Vídeo Literário
A escritora Angela Carneiro em video e textos comenta seu trabalho e suas leituras prediletas.
segunda-feira, 21 de outubro de 2024
Estrela Dalva-Uma vida simples
https://caravanagrupoeditorial.com.br/produto/estrela-dalva-uma-vida-simples/
segunda-feira, 17 de junho de 2024
segunda-feira, 18 de maio de 2020
Chapeuzinho Vermelho para imprimir
Minha neta ama chapeuzinho vermelho, então , fiz cenário e personagens para imprimir , recortar e brincar
quinta-feira, 16 de abril de 2020
A construção
https://www.youtube.com/watch?v=LV43-sbBVRU&t=126s
A
construção
Angela Carneiro
Rosa tampou os ouvidos com as mãos e o
travesseiro. Então, pegou as letras do
medo e com elas ergueu as paredes.
O medo subiu em degraus que fez em
caracóis até a água-furtada.
Bateu a porta com força. Lá, um
espaço para sua solidão cheio de abraços.
Na água-furtada, sempre chovia, e os
pequenos passos da chuva ritmavam os
outros passos que ouvia. A mãe na
cozinha, panelas em festa cheirosa. Ouvia o abrir da porta da despensa. Potes
de barro com doces, cheiros misturados, todos os mantimentos do mundo! Havia
até máquina de refrigerantes!
Ah, a casa era grande! Lá, tudo podia,
tudo havia.
No sótão, tão só, seus brinquedos e
lápis de cor e livros de figuras, e cadeirinha de balanço do seu tamanho. Uma
escrivaninha de tampa, com papéis, lápis
e borrachas cheirosas, pilhas de revistinhas! Um vidro grande cheio de bolas
de gude! E um bebedouro de água gelada!
Pegou a sede, deitou na rede e abriu
uma varanda e cantou a música da avó louca que antes de ficar louca cantava
para ela dormir.
Fiz
a cama na
varanda
me
esqueci
do cobertor
deu
um vento na
roseira
ai
meus cuidados me cobriu toda de flor!
E tanto
repetiu como sempre fazia. Repetia e pensava na cama feita na varanda, nas
pétalas macias e cheias de perfume da
flor do seu nome. Cantava baixinho pra
ninguém em fúria ouvir e ela não ouvir a fúria de ninguém. E havia um piano para acompanhar.
Pegou a música e compôs um quarto de brinquedos.
Um
trem de ferro sempre em movimento a
levava para todo o mundo! Um
teatro de fantoches e marionetes, e uma bicicleta azul. O colo do urso de
pelúcia enorme, destamanho!
Pegou
no sono e lá dormiu, quente. Pois agora nevava, era Natal no mundo dos cartões
de Natal e ela ouvia guizos. Os guizos
ficaram mais altos, cada vez mais nítidos, um chegando a tocar na sua cabeça,
frio, metálico, e mais a cabeça cobriu com o travesseiro, e sentiu que a dor
doía, que a construção podia ruir, mas não deixou, e seu coração se encheu de
força.
Pegou
a emoção e fez o quarto da televisão. Enorme! A televisão, não o quarto. Com
ar-condicionado e escuridão de cinema. E tudo se abria ou fechava bastando um
simples apertar de botão. Era o quarto das tomadas, da pipoqueira elétrica, do
computador, de todos os discos. Parecia até uma nave espacial!
Pegou
o espanto e com ele fez os cantos.
Pois
a casa dela tinha cantos. Muitos cantos!
O preferido debaixo da escada e brincava de
esconde-esconde. Lá , ninguém a achava, nunca! Por mais que procurassem, por
mais que quisessem, lá era do tamanho de seu corpo dobrado, protegida.
Pegou
a traquinagem e destrancou o escritório das conversas sérias. Conversas,
apenas, talvez até brigas que brigar é normal. Mas sem as panelas batendo, sem
os gritos, sem os gritos, sem os gritos...
Um
lugar proibido; um antepassado
emoldurado na parede de papel de enfeites dourados. Cortinas cerradas de veludo
vermelho-vinho. Uma lareira apagada. Mas
lá entrava e espiava. Garrafas de cristal, livros de couro, tudo de
couro! Uma cabeça de bicho, uma estátua de bronze. Tudo quieto, quieto, parado
no tempo dos brocados e das poeiras.
Pegou
o silêncio e o levou para seu quarto. Um quarto só para ela!
Não
tinha Tereza, não tinha Vanderlei, não tinha Juliano nem Lucia Maria. O quarto
era dela, só dela! As gavetas nunca
fecham, os sonhos escapolem por suas frestas. Nada de chaves ou trancas, mas
sim um cofre com segredo numérico: tec-tec-tec direita, tac-tac-tac esquerda,
tec-tec-tec direita. E pronto! Ele se abre com os segredos que não vai contar
nunca pois segredos não se contam. A cama era só dela, grande, macia, onde se
pulava alto. E os travesseiros enchiam de cheiro de limpo e de nuvem o
conforto. Podia, do quarto, ver o sol em tiras, ver as sombras do mundo. A
janela tinha cortinas que voavam se ventasse, e mudavam de cor com a luz.
Pegou
a alegria dos segredos e plantou um jardim para as borboletas. Um jardim com
piscina e trampolim!
E podia estar sempre lá. Antes, descia ao
porão, tanto pó! Lá estava o baú da avó. E coisas antigas contavam histórias de
outros tempos. E este segredo ela conta, pois é bom demais pra guardar: no
porão há uma passagem secreta... Verdade! Só ela sabe onde fica, é preciso
estar atento, olhar com cuidado, pisar no local certo para abrir a parede giratória que
leva para todos os caminhos. Nos caminhos, as paredes são de pedras, e a
luz é feita de fogo, e do caminho que vira estrada se quiser, que vira trilha
se quiser, uma luz aparece deixando ver a grama.
E o caramanchão! E o balanço na árvore!
Voava pelo balanço e lá de cima via o muro de pedras contornadas de verde, e
flores vermelhas espiando. E lá estava
seu cavalo comendo capim, e relinchava
sorrindo assim, do jeito que cavalo sorri.
Pegou a liberdade e fez um portão. Um
portão de troncos e escreveu em cima: Bem-vindo! e correu pela grama, e cheirou
as flores, pois lá a tarde é de sol.
Se não for susto ou medo, convida o
brinquedo para acampar. Uma cabana é lunar.Cabana é espaço para dois. E a noite
é sempre estrelada com cadentes riscando o céu.
Mas agora era dia, e as flores cheiravam, todas elas, com cores vivas, e
ela cantava a música da Linda Rosa Juvenil, pois era seu nome, Rosa: A linda
Rosa juvenil, juvenil, juvenil, vivia alegre no seu seu lar, no seu lar..
-
Mãe, cadê a Rosa?
-
O que é, Tereza?
-
A Rosa, mãe. Cê viu a Rosa?
A mãe colocava a colher de sopa no olho machucado pra
ver se a dor passava. Se tivesse bife em casa, botava bife, depois lavava e
comia. Mas não tinha, e a dor da pancada doía. Os olhos da filha Tereza mais
arregalados que o círculo da frigideira, mais que nunca, mais que em todas as
brigas.
-Deve
tá lá, escondida embaixo do lençol, como sempre que o pai chega e bota o
mundo abaixo. Lá, no alto do beliche.
-Tá
não mãe, vem ver...
- Depois, filha, depois..
Pois a dor doía, e
ainda tinha roupa pra lavar, e limpar o chão que a panela do feijão tinha
derrubado.
- Eu ajudo, mãe...
Tinha
quatro anos, Tereza, só quatro. Mas já varria e limpava e olhava os gêmeos . E
dessa vez o pai tinha batido forte e derrubado o feijão. E a pequena, magrinha,
tão pequena, pegava o balde do seu tamanho, e o pano.
- Mãe, cadê a
Rosa?
É
mesmo, já tinha acabado a briga, agora o pai não voltaria tão cedo pra casa,
Rosa sabia disso, já estava acostumada,
mas não vinha ver, não vinha ajudar a botar as coisas no lugar. Cadê a filha?
- Rosa!- gritou a
mãe. Rosa!
Devia
ter saído. Vai ver que pulou a janela do barraco, ganhou rua, fugiu do grito. E
Vanderlei que não chegava do serviço? Mas os gêmeos agora pediam peito.
Vanderlei
chegou, o feijão novo aprontou, todo mundo comeu. Menos Rosa. A mãe tinha medo de sair de casa no escuro,
os tiros já começavam no céu, o aviso que a mercadoria do morro tinha chegado.
E
Rosa não voltava pra casa. Vai ver que foi pra casa de fulana..
O
dia chegou com o ruído dos helicópteros da polícia em cima do morro. E as
crianças embaixo do beliche fugindo das balas, escondendo Vanderlei. E Rosa não
estava.
E
mais uma noite passou, e mais um dia chegou. A mãe já podia procurar por Rosa.
Vanderlei já tinha ido embora . Tereza tinha de ficar tomando conta dos gêmeos.
- Vai não, mãe,
fica..
E
os olhos negros redondos molhavam de
lagoa.
- Então, vamos
todos juntos. Mas antes vou arejar o quarto que ontem choveu.
Abriu
a janela que agora não tinha tiro no ar, e entrou o sol. E o lençol foi quarar na janela mesmo, qual bandeira em
dia de jogo.
- Mãe! Olha lá a
Rosa!
O coração da mãe
se alegrou: - Cadê, filha, cadê?
- Aqui, mãe,
correndo nas flores do lençol..
A sombra foi
preta, e a vontade de dar um tapa na filha pequena que parecia estar ficando
doida que nem a avó tinha ficado.
- Pára de falar
bobagem! Deus castiga!
- Olha, mãe! Olha
aqui no lençol! Ela tá rindo pra mim!
A
filha pequena pegava a ponta do lençol e mostrava pra mãe mas a mãe sacudia a
cabeça, lembrava da mãe louca falando com os anjos e querendo andar nua , e
cantando músicas de fantasmas.
- Olha, mãe,
também quero ir lá! Rosa! Me leva praí!-
gritava a irmã para o lençol.
- Deve ser uma
formiga, uma barata que você tá vendo...
- Olha a Rosa,
mãe, vem ver!
A
mãe resolveu olhar.
- Cruz credo!
Valha-me Padre Santinho! Nossa Senhora Aparecida! Minha Iançã! Meu Iorubá!
Do
meio das flores do lençol, Rosa acenava pra mãe, mandava beijos e sorria.
Rosa
tinha pegado a coragem como sua bagagem e
saido da casa. A casa no alto do
beliche, onde sempre a esperava com seus cômodos. A cada susto, medo, acostumara-se a
erguer suas paredes de travesseiro,
cobrir-se com seu teto de cobertor.
Vasculhava seus cantos nas dobras, descobria
seus encantos, desvendando seus
mistérios, arrumando suas gavetas em caixas de fósforos, encontrando ninhos, e nichos, e bonecos de porcelana.
Fazia o jardim com as florzinhas
estampadas do lençol. E contava-se histórias para dormir. Depois acordava, ajudava
a mãe, vestia o uniforme, ia para a escola, se tinha aula ficava, se não tinha,
voltava. E ajudava a mãe, que tentava arrumar serviço de costura à mão, nem
máquina tinha. O irmão já saído pro mundo. Às vezes no mundo ficava. E se o pai
chegava rindo, tinha de cobrir bem a
cabeça para não saber da noite dos pais, e cantar baixinho pra não acordar os
irmãos menores , mas alto o bastante para não ouvir os ruídos dos pais. Mas se
o pai chegava com o fedor de quem perdeu, não ia ter cheiro bom de feijão que
segurasse a mão pesada na mãe. Rosa corria e cobria a cabeça para não saber da
briga. Vanderlei em casa também apanhava mas já batia, um dia até tiro deu mas
não pegou. Cobria a cabeça e cantava baixinho , baixinho pra ninguém ouvir, mas
alto bastante para não ouvir os gritos. E fazia de lá sua casa, de onde não
queria sair, até dormir.
Mas, dessa vez, Rosa não saiu.
O lençol, agora, não está mais no
beliche. Está estendido de lado a lado , dividindo o quarto em dois, para a filha ter um mundo grande para morar.
sexta-feira, 23 de novembro de 2018
sexta-feira, 16 de novembro de 2018
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